Roberto Campos, o Guia das Direitas (de ontem e de hoje)
Leonardo Santos
Com a ascensão do movimento neoconservador no
Brasil, isso por volta de meados da década de 2000, mais ou menos no início do
segundo mandato presidencial de Lula da Silva, parte da esquerda começou a
ensaiar um discurso bastante curioso.
Diante da direita renovada, mas de maus
bofes e notória truculência verbal, que então surgia na época com figuras de
proa como Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi (que costumava se referir ao então
presidente como “anta”), Augusto Nunes e Reinaldo Azevedo (que lançou um livro
que logo virou best seller e que tinha o sugestivo título O País dos
Petralhas), e, um pouco mais tarde - já na era Dilma - Rodrigo Constantino,
certos setores como que para enfatizar o primarismo dessa corrente conservadora,
vez ou outra rememoravam figuras como Roberto Campos, Carlos Guilherme Merquior,
Paulo Francis e até Carlos Lacerda.
Não obstante as enormes diferenças entre
os três, de ênfase inclusive no tom conservador, a citação buscava trazer à
memória uma qualidade que a direita política podia ostentar no passado. Autores
cuja erudição, bom modos e discrição (com exceção do Corvo) conferiam certa
áurea de sofisticação e requinte a uma certa intelligentsia que se gabava em
ser baluarte do liberalismo.
Com a assunção ao poder de Jair Bolsonaro
e o triunfo eleitoral do seu partido de apoio (o Partido Social Liberal) e os
de vários grupos políticos que orbitam em torno dele (MBL, Maçonaria,
Neointegralistas, Monarquistas etc.), ficou nítido a ampliação da plêiade de
“intelectuais” da extrema-direita e um notório rebaixamento do nível
comportamental e ético demonstrado por essa nova corrente, muito mais
virulenta, agressiva e intolerante; e a partir daí a celebração de uma direita
mítica perdida no passado ganhou novo fôlego. É como se essa nova direita fosse
ela mesma uma desonra para aquilo que foi uma outra direita que historicamente
conseguiu se impor não com músculos, histeria ou armas na cintura, mas com
cérebro, citações em grego e latim e oratória sofisticada.
E nessa rememoração a figura de Roberto
Campos sempre emerge com bastante força. Campos seria a expressão máxima de uma
estirpe de homens dedicados a pensar o país, saídas para os seus seculares
impasses – sempre pela direita.
E nessa formulação Roberto Campos seria o
antípoda perfeito da “direita chucra” hoje dominante.
O texto da apresentação de Bob Fields numa
entrevista dele no Roda Viva em 1997 é bem representativo dessa
pespectiva: “um defensor ferrenho do livre mercado, da redução do tamanho do
Estado e da privatização. Ex-seminarista, ex-diplomata, político e um dos
economistas e intelectuais brasileiros mais influentes, ele é o principal representante
do pensamento liberal clássico no país.”
Poderíamos pensar: impossível alguém desse campo
conservador de hoje pensar, quanto mais ser representante de algo como o
“pensamento liberal clássico no país”.
Campos e a direita de sua época nada tem a
ver com essa direita de hoje. E certa esquerda é a primeira a bater no peito
para dizê-lo.
Ledo engano.
A não ser que queiramos reduzir toda uma
corrente de pensamento a um conjunto específico de cacoetes e vícios, Roberto Campos pode ter tido todos os méritos,
mas nada do que fez (e pensou) foi capaz de o diferenciar em essencial da
chamada direita radical.
E isso se revela em três pontos
essenciais.
O primeiro diz respeito ao seu
posicionamento sobre a ditadura empresarial-militar implantada em 1964.
Roberto Campos foi incapaz de escrever uma
palavrinha sequer de arrependimento ou remorso nas milhares de páginas que
escreveu seja em livros seja em artigos veiculados na grande imprensa ou das
centenas de entrevistas que deu após ocupar cargos importantes junto aos
governos militares.
Ao contrário. O que temos aqui é um tom de
júbilo descarado. Na mesma entrevista de 1997, lemos:
A chamada Revolução de 64 não foi uma revolução,
foi uma contra-revolução. É uma ilusão dos nossos esquerdistas imaginar,
idilicamente, que em 1964 havia uma opção entre uma democracia liberal e uma
democracia social. Não existia não. A opção era entre dois autoritarismos,
seria o autoritarismo da esquerda. O Prestes dizia: “Nós ainda não estamos no
poder, mas já estamos no governo”. A opção era entre o autoritarismo de
esquerda ideológico feroz, capaz de levar pessoas para o paredón. Só o Che
Guevara matou 600 pessoas em Cuba. Ele era manso perto de Fidel Castro. A opção
era entre um autoritarismo feroz, ideológico...
Como se não bastasse fazer uso da teoria
dos “Dois demônios” (tão veiculado por aqueles que relativizaram os crimes de
todas as ditaduras latino-americanas, equiparando os crimes de tortura e
genocídio perpetrados pelo Estado com as ações da luta armada), Campos recorre
a uma matemática macabra: com base no que teria sido o número de vítimas da
ditadura cubana, ele simplesmente faz pouco caso das mortes produzidas pela
ditadura brasileira.
Roberto Campos reproduz aqui uma narrativa
sobre o Golpe que era a mesma de gente que ele se dizia crítico, como o general
Costa e Silva. O que temos aqui não é oposição alguma, mas comunhão de
pensamento. Aqui o liberal não tem a menor vergonha de se alinhar com a ideologia
dos generais da Linha Dura. Veja-se a título de comparação o que Jarbas
Passarinho, um dos subscritores do AI-5 disse sobre a mesma “Revolução(sic) de
64”:
Nós vivíamos o auge da guerra fria, da expansão do
comunismo dominando a Ásia, grande parte da África e já tendo uma
cabeça-de-ponte em Cuba, no Caribe, de onde vinha não pequena parcela de
guerrilheiros treinados militarmente para a tentativa de derrubar o regime
instalado a partir de 1964. A reação era armada e dirigida por líderes
marxistas-leninistas que, se vitoriosos, pretendiam instalar um satélite da
URSS no Brasil, uma imensa Cuba, cujo ditador pretendia ser uma espécie de
Simon Bolívar. Além da guerrilha de Marighella, havia o terrorismo, que ele
defendia e mandava praticar. (Jarbas Passarinho, “Waterloo e
o AI-5”, O Estado de S. Paulo, 13/08/1996, Caderno A, p. 2).
Se pudesse ser resumida assim o raciocínio
dos defensores da ditadura militar, a ditadura tinha que ser combatida com a
instauração de uma ditadura. E a melhor maneira de evitar a produção de
execuções e torturas era promover uma grande onda de execuções e torturas.
Ainda sobre liberdades individuais e
direitos sociais – e é este o segundo ponto, Campos enuncia essa verdadeira
pérola, após ser indagado por Eleonora de Lucena sobre suas opiniões sobre pena
de morte e controle de natalidade.
“Eu acho a coisa mais trágica do mundo é a
gente deliberadamente fabricar pobres. E sou a favor da pena de morte, porque a
pena de morte não destrói as mortes, mas destrói os assassinos. E eu acho que a
pena de morte é importante psicologicamente, porque intimida o eventual
assassino. É importante economicamente, porque o país se livra de ter que
sustentar criminosos repetitivos, as vezes de múltiplos assassinatos, ao longo
de 30 anos. Se a gente já nem pode dar um salário mínimo decente aos homens
honestos, porque sustentar durante 30 anos, 40 anos, um assassino na prisão.
Então eu acho que a pena de morte é uma coisa perfeitamente razoável. Não sou a
favor da legalização das drogas.”
Sobre o controle de natalidade, importa lembrar que
a não adoção desta pela ditadura militar seria a única “autocrítica” feita por
Campos. O único fato que ele realmente lamentava não ter implantado, para por
fim, conforme ele gostava de dizer, à fabricação em grande escala de pobres.
Com ênfase até maior na defesa da pena de morte,
Campos se expressou assim numa entrevista de 24 de fevereiro de 1992 sobre a
defesa que fazia de um notório defensor da “pena de morte aos bandidos”, caso
do ultradireitista Amaral Netto:
“Roberto
Campos: No
PDS do Rio de Janeiro, nós temos um bom acontecimento: vai lançar-se candidato,
no dia 13 de março, o Amaral Netto, que é um líder...
Jorge Escosteguy: [Que
defende a] pena de morte.
Roberto
Campos: ...vigoroso
de convicções firmes. Marcamos a convenção que o elegerá, que o designará
candidato, para sexta-feira, 13 de março, sexta-feira 13, dia do azar.
Jorge Escosteguy: De
março.
Roberto
Campos: Dia
do azar dos bandidos e dia da chegada do xerife ao Rio de Janeiro.
Tão Gomes Pinto: O senhor
defende a pena de morte?
Jorge Escosteguy: O senhor
defende a pena de morte?
Roberto
Campos: Defendo.
Luiz Gutemberg: Privada ou
estatal? [risos]
Roberto
Campos: Eu
sou privatista – o Nassif sabe disso –, absolutamente privatista, exceto de uma
coisa – a pena de morte está privatizada, no Rio de Janeiro é inclusive uma
indústria –, eu quero que a pena de morte seja estatizada; a única coisa a ser
estatizada é a pena de morte.”
Ou seja, a única política pública que Roberto
Campos defendeu em toda a sua vida foi a pena de morte.
A pergunta que se impõe sobre este ponto: alguém é
capaz de imaginar alguém da chamada nova extrema-direita ser contra essa ideia?
O terceiro e último ponto diz respeito a uma
suposta diferença substantiva entre Roberto Campos, o arauto da direita
ilustrada, e o capitão Jair Bolsonaro, colosso da direita inculta, antípoda do
primeiro.
Será mesmo?
A crer nas palavras do próprio Campos, ele seria o
primeiro a contestar tal opinião. Ele morreria em 2001. Nem brincando suspeitava
que estaríamos vivendo o atual momento, mas desde aquela época Bolsonaro já
defendia praticamente todas as ideias que ele segue advogando, inclusive como
presidente do país.
Em seu discurso de despedida da Câmara dos
deputados, em 28 de janeiro de 1999, ele reservaria uma menção especial ao
capitão: “Tive grande apoio dos meus colegas de PPB, Jair Bolsonaro e Francisco
Dornelles, e consegui no Rio de Janeiro uma votação expressiva.”
O que mostra inclusive que Jair era um dos
principais cabo-eleitorais do “brilhante pensador”.
E, para terminar, cabe lembrar também: se
no Rio Campos exaltava figuras como Bolsonaro e Amaral Netto, em São Paulo ele
batia palmas para Paulo Maluf.
Na mesma entrevista para o Roda Viva em
1992, ele confessava:
Eu acho que é um homem muito qualificado
para o exercício da administração, foi um grande administrador em São Paulo e
agora está amadurecido pela experiência. Eu acho que o Brasil perdeu em não ter
Paulo Maluf. E tem Erundina, meu Deus do céu.
Se bem pesadas as coisas, Campos sempre
achou o atrasado, moderno.
Essa extrema-direita xucra longe de ter em
Roberto Campos um antípoda, tem nele uma referência, um guia, um verdadeiro
modelo – não de conduta – mas de ideais.
E para terminar mesmo: você ainda tem
alguma dúvida em quem o nobre pensador e paladino da liberdade humana votaria
na última eleição presidencial?