sexta-feira, 6 de dezembro de 2019





O estudo de fenômenos como o Fascismo tende a ser muito pouco proveitoso, se o sujeito parte para esse tipo de iniciativa querendo mostrar que o que vivemos hoje bate certinho, que Bolsonarismo e Fascismo são a mesma coisa.
Estamos diante de um sujeito que já tem certeza absoluta das respostas. Ele com isso só encontra aquilo que quer encontrar. A vontade de fazer valer as suas ideias se sobrepõe à capacidade de se abrir para novas perguntas.
Por outro lado, o estudo do Fascismo se mostra mais rico quando tentamos imaginar (e não apenas provar nossas convicções) como os fascistas lidavam com questões em aberto nos tempos de hoje, no contexto em que lidamos com desafios como o do Bolsonarismo.
Cito um: como o Partido Fascista foi se construindo ao longo do tempo, desde os primeiros ensaios, manifestos e ações até a consolidação do poder (inclusive do poder sobre a máquina estatal)?
Temos a tendência (que se deve sobretudo a um profundo desconhecimento histórico) que Partido Fascista sempre foi Mussolini e que ele era homogêneo e sem conflitos, com uma linguagem, ideologia e estratégia prontas, mesmo antes de terem existido.
Nada mais falso.
Sempre imaginamos também que o Partido Fascista sempre foi extremista, o que resultaria em duas questões: a) ele nunca teve de lidar com extremos no seu interior; b) até porque o extremismo lhe era intrínseco, e por isso era visto e pensado de maneira absolutamente naturalizada.
E, de novo: falso também.
Mussolini e o próprio Partido Fascista devem muito ao que viria a ser, perto da "Marcia de Roma", depois de uma luta interna intensa organizada para debelar o que Mussolini enxergava como a "ala extremista" que colocava em risco a estabilidade do partido: ala esta encabeçada por Malaparte, Balbo e Farinacci.

Os Fascistas não conquistaram o poder porque pensavam do mesmo jeito. E antes de impor o controle sobre a sociedade, Mussolini estabeleceu antes sobre o Partido.

Agora, o outro movimento é válido: como pensar questões daquela época para o contexto de hoje: como pensar isso diante de um sujeito que nem partido tem?


Leonardo Santos

domingo, 1 de dezembro de 2019


Em seu artigo do The Guardian, o escritor George Monbiot[1] faz uma interessante reflexão sobre os impactos da educação transmitida nos colégios internos sobre a elite política da Inglaterra.

Segundo ele,

Há dois fatos rígidos sobre a política britânica: o primeiro é que é controlada, num grau sem paralelo em qualquer outra nação da Europa ocidental, por uma minúscula elite quase nada representativa. Como a quase todo aspecto da vida pública aqui, os governos são dominados por pessoas educadas primeiramente em escolas privadas de elite, como as de Oxford ou Cambridge.

O segundo é que muitas daquelas pessoas possuem um desastroso conjunto de vícios: desonestidade, corporativismo e total ausência de princípios. Vejam se nosso Primeiro Ministro não é um exemplo disso? O que norteia ele? Como foi possível esse tipo de gente nos governar hoje? Nós precisamos urgentemente entender um sistema que envenenou a vida desta nação.



Segundo ele, os colégios internos são verdadeiras fábricas de produção de membros da elite voltadas para o controle dos principais postos da administração pública do país. Não são apenas unidades educacionais, mas centros de difusão e inculcação de valores. Os ecos da sociologia educacional francesa da lavra de Pierre Bourdieu são evidentes.

Ambos de nós sofremos uma forma de abuso peculiarmente britânica, uma intimamente associada com a natureza do poder em nosso país: nós fomos enviados para internatos quando nós éramos muito jovens.



Mas o ponto mais relevante é este: a repugnância pelo elemento popular que caracteriza hoje a maior parte da classe política britânica, em especial a mais conservadora e de direita, tem uma razão de ser. E os colégios internos, com seus valores que beiram a boçalidade, o desprezo pelos sentimentos do outro, a descrença em qualquer empatia, uma quase falta de humanidade, tem uma contribuição fundamental.



Continua ele:

A justificativa para o internamento é baseada numa difundida e por isso comum ideia equivocada. Porque a dureza física na infância torna você fisicamente resistente, os fundadores do sistema acreditam que a dureza emocional deve produzir resistência emocional. Na verdade, temos o oposto. Isso causa danos psicológicos que somente anos de amor e terapia podem posteriormente reparar. Mas se há duas coisas que você sendo enviado para um colégio interno eles acabam te ensinando, é que não se pode confiar, e que você não deveria admitir que precisa de ajuda.



Acredito que essa reflexão de Monbiot seja bastante pertinente, atacando o cerne da crise na relação entre a classe política do país e a sociedade civil, como o Brexit evidenciou.



Penso que muitos britânicos ao lerem se sintam instigados a concordar. Não sei, é apenas um palpite. Mas o mais importante para nós brasileiros: o que esse texto teria de relevante para pensar os dilemas de nosso país?



Logicamente, os dois países têm realidade bem distintas. A história, a organização da sociedade, a dinâmica da política, o tamanho de cada país, as diferenças regionais dentro dele etc. É tudo muito diferente.



Muitos poderiam pensar que em que pese todos os problemas, não dá para dizer que a vida política seja monopolizada por uma elite econômica. Nem todos os deputados que temos e até senadores, estudaram nas melhores escolas do país. A casos comprovados que alguns de nossos parlamentares nem plenamente alfabetizados conseguiram ser.




Contudo, vários postos da administração pública, principalmente aqueles ligados ao braço econômico do estado (ministério da Fazenda, do Planejamento, receita federal etc.) são sim monopólios de uma elite que educada nos centros de ensino mais seletos do país.


Na verdade, a democratização da política do país é só aparente. Quando se vê os postos mais estratégicos da administração pública, estaremos lidando com um grupo muito restrito que comanda os destinos do país, que decide a direção dos investimentos do Estado, que determina quem tem que ser taxado, pagar impostos, e que determina também quem deve abocanhar as maiores e melhores fatias do orçamento público. Não é preciso ter profundo conhecimento sobre as entranhas da economia do Brasil para saber quais setores e agentes são privilegiados pela política desses meninos saídos dos bancos da PUC do Rio, por exemplo.



E o artigo de Monbiot pode ajudar a pensar como o caráter tão marcadamente anti-popular dessas instâncias pode ter relação sim com esses centros de ensino, que são também centros de formação de caráter.



Leonardo Santos

[1] Monbiot, George. Our politicians are formed in a cruel crucible: boarding school. The Guardian, 07/11/2019, p. 4.


Eu nunca vi uma classe profissional pra ser tão desrespeitosa e arrogante como a dos treinadores brasileiros.

Hoje a gente fala muito do Renato. Mas as tolices que ele fala não são nada diante de vergonhas históricas que passamos. 

Como não lembrar do Zagalo fazendo galhofa da Holanda em 74, dizendo na véspera daquele massacre, que ia aproveitar o jogo para "fazer uma laranjada".

Pior foi o Telê Santana, que disse na véspera da final de 1994 contra o Vélez Sarsfield, que era o "time argentino mais fraco que ele já tinha enfrentado". 

E que era impossível perder aquele título.

O time do Vélez era excelente. Era treinado por um tal Carlos Bianchi. E tinha como capitão o Chillavert.

Tente imaginar o que foi a preleção do Vélez com essas declarações do Telê.


P.S.: lógico que o Vélez foi campeão!




Leonardo Santos


Nem River, nem Boca. Mas sim o Vélez.


Visitar a História é sempre o maior barato.

Eu cá nem me lembrava, nem tinha mais a ideia de que o grande time argentino da segunda metade da década de 90 tinha sido o Vélez Sarsfield.

Ganhou nada menos que 5 títulos internacionais. 1 por ano.
Pra se ter noção disso, basta lembrar que nenhum time brasileiro alcançou essa marca na história. Nem o Santos de Pelé.



E detalhe: Asad, o centroavante do Vélez - e disso eu me lembrava - era barrigudo. E esse barrigudo traçou a melhor dupla de zaga que eu já vi jogar: Costacurta e Baresi. Foi em Tóquio. Só isso.








Leonardo Santos

quinta-feira, 28 de novembro de 2019



Leonardo Santos, Historiador


Os seguidores do campo da esquerda aqui no Brasil acabaram nos últimos anos se habituando à ideia de que não haveria imprensa mais comprometida com os poderosos e com o mau jornalismo do que a grande imprensa brasileira.

Mas isso não é verdade. A verdade é que esse tipo de visão – profundamente equivocada – advém de um isolamento cada vez maior não só do país em relação ao que se passa no mundo como da própria esquerda. Nossa atenção parece atravessar as fronteiras nacionais apenas quando ocorre eventos extraordinários como aqueles que estão ocorrendo no Chile e na Bolívia.

Mau jornalismo e imprensa que desinforma não é uma exclusividade brasileira. Vejamos o exemplo da cobertura da grande imprensa inglesa sobre o Golpe na Bolívia, deflagrado no último dia 10 de novembro com a renúncia de Evo Morales do cargo de presidente.

Pesquisamos as edições do The Daily Telegraph (TDT) e The Times, dois dos maiores porta-vozes da direita britânica na imprensa.

Para começar, nenhum deles reconhece que tenha havido um golpe. O TDT, na edição do último dia 12 de novembro, chega a se referir a Jeanine Añez como “suposta presidente interina da Bolívia”. Mas para logo a seguir afirmar que ela “fez ontem um chamado emocionado por um fim da violência que varre a capital, já que as confrontações entre a polícia e grupos que apoiam a manutenção do presidente Evo Morales seguem ocorrendo”.

Ou seja, longe de ser uma golpista, Añez é uma verdadeira patriota, que chegou ao poder para reestabelecer o reino da paz e do amor.

Mais do que isso, o jornal ainda faz pilhéria com aqueles que defendem que tenha havido um golpe no país, praticamente taxando de esquerdista bolivariano quem assim crê. Esse trecho é de um cinismo revelador: “Enquanto os EUA expressaram apoio pela renúncia do Sr. Morales, que ele anunciou no domingo, Venezuela se juntou ao coro de seus aliados de esquerda descrevendo a onda de eventos como um ‘golpe’".

 E sobre a pressão dos militares para a renúncia de Evo? Nada. O único destaque dado é sobre o relatório da OEA:

No sábado um relatório preliminar das Organizações dos Estados Americanos disseram que as eleições de 20 de outubro, em que Morales alcançou a vitória em primeiro turno por uma margem mínima de votos, foi alvo de "clara manipulação" e pediu novas eleições. Sr. Morales aceitou o pedido, mas depois de duas semanas de crescentes protestos violentos por todo o país, acabou sendo tarde demais.”



Lendo isso não tem como não concluir que o verdadeiro golpista foi o Evo!

Para terminar, o jornal direitista não deixa de deplorar a nota de protesto emitida por Jeremy Corbyn, líder da esquerda trabalhista. Para tanto, cita sem nenhum pudor a nota do ultradireitista Dominic Raab, secretário para Assuntos Externos do ultraconservador governo Boris Johnson:

Entrementes, Dominic Raab, o secretário de assuntos exteriores, rebateu o tweet de Jeremy Corbyn em apoio ao Sr. Morales. Sr. Raab escreveu: ‘As Organizações dos Estados Americanos recusaram certificar as eleições devido a fraudes sistêmicas. O povo está protestando e fazendo greve numa escala sem precedentes. Mas Jeremy Corbyn põe a solidariedade Marxista acima da democracia’.” 



 O The Times publica na edição dia 11/11 que Evo não caiu por conta de um golpe: ele caiu ao “final de semana após um relatório crítico da O.E.A. detalhar "manipulações claras" das eleições do último mês.

O jornal trata de enquadrar logo de início todo aquele que enxerga naquilo um golpe como um adepto de um verdadeiro “Eixo do Mal”: “Sr. Corbyn, por exemplo, se juntou a Rússia, Venezuela, Cuba e México para denunciar que o Sr. Morales foi forçado a sair por um golpe”.

Já o apoio ao “golpe”, ou como diz o jornal, a renúncia do fraudador Evo, é enquadrada como mais uma vitória da democracia e do Estado de Direito. The Times também recorre à Raab para manifestar a crença nesse ideal tão nobre: "Nós esperamos, escreve Raab, que a crise atual na Bolívia possa ser resolvida tranquilamente, pacificamente e de uma maneira democrática. O povo boliviano merece ter a oportunidade de votar em eleições justas e livres."

Na edição do dia seguinte (12/11) os correspondentes Stephen Gibbs e Lucinda Elliott conseguem fazer uma abordagem menos panfletária.  

Sr. Morales, que ficou no poder por quase 14 anos [...] renunciou horas depois do General Williams Kaliman, cabeça do Exército, ter clamado por sua saída para permitir a restauração da "paz e estabilidade". O presidente socialista, tuitando de um local não identificado, disse mais tarde que foi vítima de um golpe”.



A intervenção militar é mencionada, assim como as realizações do governo Evo:

Sr. Morales, que chegou ao poder em janeiro de 2006, é considerado responsável por reduzir a pobreza, mas em anos recentes sua popularidade decaiu e foi acusado de autoritarismo. Ele estava buscando um quarto mandato em desafio à constituição que permite somente dois mandatos consecutivos. Ele perdeu um referendum em 2016 para estender o limite de mandatos, mas o resultado desta foi revogado por uma corte que decidiu que continuar na busca da reeleição era para o presidente uma questão de ‘direitos humanos’.”



Mas o estrago já estava feito. A cobertura tendenciosa dos jornalões ingleses já tinham consolidado a narrativa típica sobre os países latino-americanos. A Bolívia como uma autêntica república de bananas e a fuga de um mais um caudilho autoritário.

Importa frisar mais uma vez: esse modelo indecente e preconceituoso, com raízes na Era Colonialista, segue fazendo muito sucesso numa imprensa supostamente mais sofisticada e honesta que a brasileira.

Só que não, essa é a verdade.

Grande imprensa é sinônimo de mau jornalismo não só no Brasil. É para inglês ver, também.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Roberto Campos, o Guia das Direitas (de ontem e de hoje)

Leonardo Santos
Com a ascensão do movimento neoconservador no Brasil, isso por volta de meados da década de 2000, mais ou menos no início do segundo mandato presidencial de Lula da Silva, parte da esquerda começou a ensaiar um discurso bastante curioso.

Diante da direita renovada, mas de maus bofes e notória truculência verbal, que então surgia na época com figuras de proa como Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi (que costumava se referir ao então presidente como “anta”), Augusto Nunes e Reinaldo Azevedo (que lançou um livro que logo virou best seller e que tinha o sugestivo título O País dos Petralhas), e, um pouco mais tarde - já na era Dilma - Rodrigo Constantino, certos setores como que para enfatizar o primarismo dessa corrente conservadora, vez ou outra rememoravam figuras como Roberto Campos, Carlos Guilherme Merquior, Paulo Francis e até Carlos Lacerda.

Não obstante as enormes diferenças entre os três, de ênfase inclusive no tom conservador, a citação buscava trazer à memória uma qualidade que a direita política podia ostentar no passado. Autores cuja erudição, bom modos e discrição (com exceção do Corvo) conferiam certa áurea de sofisticação e requinte a uma certa intelligentsia que se gabava em ser baluarte do liberalismo.

Com a assunção ao poder de Jair Bolsonaro e o triunfo eleitoral do seu partido de apoio (o Partido Social Liberal) e os de vários grupos políticos que orbitam em torno dele (MBL, Maçonaria, Neointegralistas, Monarquistas etc.), ficou nítido a ampliação da plêiade de “intelectuais” da extrema-direita e um notório rebaixamento do nível comportamental e ético demonstrado por essa nova corrente, muito mais virulenta, agressiva e intolerante; e a partir daí a celebração de uma direita mítica perdida no passado ganhou novo fôlego. É como se essa nova direita fosse ela mesma uma desonra para aquilo que foi uma outra direita que historicamente conseguiu se impor não com músculos, histeria ou armas na cintura, mas com cérebro, citações em grego e latim e oratória sofisticada.

E nessa rememoração a figura de Roberto Campos sempre emerge com bastante força. Campos seria a expressão máxima de uma estirpe de homens dedicados a pensar o país, saídas para os seus seculares impasses – sempre pela direita.

E nessa formulação Roberto Campos seria o antípoda perfeito da “direita chucra” hoje dominante.

O texto da apresentação de Bob Fields numa entrevista dele no Roda Viva em 1997 é bem representativo dessa pespectiva: “um defensor ferrenho do livre mercado, da redução do tamanho do Estado e da privatização. Ex-seminarista, ex-diplomata, político e um dos economistas e intelectuais brasileiros mais influentes, ele é o principal representante do pensamento liberal clássico no país.”

Poderíamos pensar: impossível alguém desse campo conservador de hoje pensar, quanto mais ser representante de algo como o “pensamento liberal clássico no país”.

Campos e a direita de sua época nada tem a ver com essa direita de hoje. E certa esquerda é a primeira a bater no peito para dizê-lo.

Ledo engano.

A não ser que queiramos reduzir toda uma corrente de pensamento a um conjunto específico de cacoetes e vícios,  Roberto Campos pode ter tido todos os méritos, mas nada do que fez (e pensou) foi capaz de o diferenciar em essencial da chamada direita radical.

E isso se revela em três pontos essenciais.

O primeiro diz respeito ao seu posicionamento sobre a ditadura empresarial-militar implantada em 1964.

Roberto Campos foi incapaz de escrever uma palavrinha sequer de arrependimento ou remorso nas milhares de páginas que escreveu seja em livros seja em artigos veiculados na grande imprensa ou das centenas de entrevistas que deu após ocupar cargos importantes junto aos governos militares.

Ao contrário. O que temos aqui é um tom de júbilo descarado. Na mesma entrevista de 1997, lemos:



A chamada Revolução de 64 não foi uma revolução, foi uma contra-revolução. É uma ilusão dos nossos esquerdistas imaginar, idilicamente, que em 1964 havia uma opção entre uma democracia liberal e uma democracia social. Não existia não. A opção era entre dois autoritarismos, seria o autoritarismo da esquerda. O Prestes dizia: “Nós ainda não estamos no poder, mas já estamos no governo”. A opção era entre o autoritarismo de esquerda ideológico feroz, capaz de levar pessoas para o paredón. Só o Che Guevara matou 600 pessoas em Cuba. Ele era manso perto de Fidel Castro. A opção era entre um autoritarismo feroz, ideológico...



Como se não bastasse fazer uso da teoria dos “Dois demônios” (tão veiculado por aqueles que relativizaram os crimes de todas as ditaduras latino-americanas, equiparando os crimes de tortura e genocídio perpetrados pelo Estado com as ações da luta armada), Campos recorre a uma matemática macabra: com base no que teria sido o número de vítimas da ditadura cubana, ele simplesmente faz pouco caso das mortes produzidas pela ditadura brasileira.

Roberto Campos reproduz aqui uma narrativa sobre o Golpe que era a mesma de gente que ele se dizia crítico, como o general Costa e Silva. O que temos aqui não é oposição alguma, mas comunhão de pensamento. Aqui o liberal não tem a menor vergonha de se alinhar com a ideologia dos generais da Linha Dura. Veja-se a título de comparação o que Jarbas Passarinho, um dos subscritores do AI-5 disse sobre a mesma “Revolução(sic) de 64”:

Nós vivíamos o auge da guerra fria, da expansão do comunismo dominando a Ásia, grande parte da África e já tendo uma cabeça-de-ponte em Cuba, no Caribe, de onde vinha não pequena parcela de guerrilheiros treinados militarmente para a tentativa de derrubar o regime instalado a partir de 1964. A reação era armada e dirigida por líderes marxistas-leninistas que, se vitoriosos, pretendiam instalar um satélite da URSS no Brasil, uma imensa Cuba, cujo ditador pretendia ser uma espécie de Simon Bolívar. Além da guerrilha de Marighella, havia o terrorismo, que ele defendia e mandava praticar. (Jarbas Passarinho, “Waterloo e o AI-5”, O Estado de S. Paulo, 13/08/1996, Caderno A, p. 2).



Se pudesse ser resumida assim o raciocínio dos defensores da ditadura militar, a ditadura tinha que ser combatida com a instauração de uma ditadura. E a melhor maneira de evitar a produção de execuções e torturas era promover uma grande onda de execuções e torturas.

Ainda sobre liberdades individuais e direitos sociais – e é este o segundo ponto, Campos enuncia essa verdadeira pérola, após ser indagado por Eleonora de Lucena sobre suas opiniões sobre pena de morte e controle de natalidade.

Eu acho a coisa mais trágica do mundo é a gente deliberadamente fabricar pobres. E sou a favor da pena de morte, porque a pena de morte não destrói as mortes, mas destrói os assassinos. E eu acho que a pena de morte é importante psicologicamente, porque intimida o eventual assassino. É importante economicamente, porque o país se livra de ter que sustentar criminosos repetitivos, as vezes de múltiplos assassinatos, ao longo de 30 anos. Se a gente já nem pode dar um salário mínimo decente aos homens honestos, porque sustentar durante 30 anos, 40 anos, um assassino na prisão. Então eu acho que a pena de morte é uma coisa perfeitamente razoável. Não sou a favor da legalização das drogas.”

Sobre o controle de natalidade, importa lembrar que a não adoção desta pela ditadura militar seria a única “autocrítica” feita por Campos. O único fato que ele realmente lamentava não ter implantado, para por fim, conforme ele gostava de dizer, à fabricação em grande escala de pobres.

Com ênfase até maior na defesa da pena de morte, Campos se expressou assim numa entrevista de 24 de fevereiro de 1992 sobre a defesa que fazia de um notório defensor da “pena de morte aos bandidos”, caso do ultradireitista Amaral Netto: 

Roberto Campos: No PDS do Rio de Janeiro, nós temos um bom acontecimento: vai lançar-se candidato, no dia 13 de março, o Amaral Netto, que é um líder...

Jorge Escosteguy: [Que defende a] pena de morte.

Roberto Campos: ...vigoroso de convicções firmes. Marcamos a convenção que o elegerá, que o designará candidato, para sexta-feira, 13 de março, sexta-feira 13, dia do azar.

Jorge Escosteguy: De março.

Roberto Campos: Dia do azar dos bandidos e dia da chegada do xerife ao Rio de Janeiro.

Tão Gomes Pinto: O senhor defende a pena de morte?

Jorge Escosteguy: O senhor defende a pena de morte?

Roberto Campos: Defendo.

Luiz Gutemberg: Privada ou estatal? [risos]

Roberto Campos: Eu sou privatista – o Nassif sabe disso –, absolutamente privatista, exceto de uma coisa – a pena de morte está privatizada, no Rio de Janeiro é inclusive uma indústria –, eu quero que a pena de morte seja estatizada; a única coisa a ser estatizada é a pena de morte.”



Ou seja, a única política pública que Roberto Campos defendeu em toda a sua vida foi a pena de morte.

A pergunta que se impõe sobre este ponto: alguém é capaz de imaginar alguém da chamada nova extrema-direita ser contra essa ideia?

O terceiro e último ponto diz respeito a uma suposta diferença substantiva entre Roberto Campos, o arauto da direita ilustrada, e o capitão Jair Bolsonaro, colosso da direita inculta, antípoda do primeiro.

Será mesmo?

A crer nas palavras do próprio Campos, ele seria o primeiro a contestar tal opinião. Ele morreria em 2001. Nem brincando suspeitava que estaríamos vivendo o atual momento, mas desde aquela época Bolsonaro já defendia praticamente todas as ideias que ele segue advogando, inclusive como presidente do país.



Em seu discurso de despedida da Câmara dos deputados, em 28 de janeiro de 1999, ele reservaria uma menção especial ao capitão: “Tive grande apoio dos meus colegas de PPB, Jair Bolsonaro e Francisco Dornelles, e consegui no Rio de Janeiro uma votação expressiva.”

O que mostra inclusive que Jair era um dos principais cabo-eleitorais do “brilhante pensador”.

E, para terminar, cabe lembrar também: se no Rio Campos exaltava figuras como Bolsonaro e Amaral Netto, em São Paulo ele batia palmas para Paulo Maluf.

Na mesma entrevista para o Roda Viva em 1992, ele confessava:

Eu acho que é um homem muito qualificado para o exercício da administração, foi um grande administrador em São Paulo e agora está amadurecido pela experiência. Eu acho que o Brasil perdeu em não ter Paulo Maluf. E tem Erundina, meu Deus do céu.

Se bem pesadas as coisas, Campos sempre achou o atrasado, moderno.

Essa extrema-direita xucra longe de ter em Roberto Campos um antípoda, tem nele uma referência, um guia, um verdadeiro modelo – não de conduta – mas de ideais.

E para terminar mesmo: você ainda tem alguma dúvida em quem o nobre pensador e paladino da liberdade humana votaria na última eleição presidencial?